sábado, 30 de março de 2013

sábado, 2 de março de 2013

Ontem à Tarde um Homem das Cidades

Ontem à tarde um homem das cidades 
Falava à porta da estalagem. 
Falava comigo também. 
Falava da justiça e da luta para haver justiça 
E dos operários que sofrem, 
E do trabalho constante, e dos que têm fome, 
E dos ricos, que só têm costas para isso. 
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos 
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia 
O ódio que ele sentia, e a compaixão 
Que ele dizia que sentia. 
(Mas eu mal o estava ouvindo. 
Que me importam a mim os homens 
E o que sofrem ou supõem que sofrem? 
Sejam como eu — não sofrerão. 
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os 
outros, 
Quer para fazer bem, quer para fazer mal. 
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos. 
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.) 
Eu no que estava pensando 
Quando o amigo de gente falava 
(E isso me comoveu até às lágrimas), 
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos 
A esse entardecer 
Não parecia os sinos duma capela pequenina 
A que fossem à missa as flores e os regatos 
E as almas simples como a minha. 
(Louvado seja Deus que não sou bom, 
E tenho o egoísmo natural das flores 
E dos rios que seguem o seu caminho 
Preocupados sem o saber 
Só com florir e ir correndo. 
É essa a única missão no Mundo, 
Essa — existir claramente, 
E saber faze-lo sem pensar nisso. 
E o homem calara-se, olhando o poente. 
Mas que tem com o poente quem odeia e ama? 

Alberto Caeiro